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  • Foto do escritorNayara Reynaud

SOLDADOS DO ARAGUAIA | Soldadinhos não são de chumbo

Atualizado: 11 de ago. de 2020


Cena do documentário Soldados do Araguaia (2017) | Foto: Divulgação (Giros Produtora)

Depois de surpreender plateias revelando um desconhecido envolvimento direto de brasileiros com o nazismo alemão nos anos 1930, a partir de um tijolo com uma suástica encontrado em uma fazenda do interior paulista, que trouxe dezenas de meninos negros de um orfanato carioca para servirem de força de trabalho – obviamente, escrava –, o documentarista Belisario Franca apresenta agora o segundo capítulo da sua chamada “trilogia do silenciamento”. Tendo como foco trazer episódios esquecidos na História Brasileira como o do premiado Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil (2016), o cineasta desta vez explora um fato não necessariamente desconhecido, mas obscuro, através de uma perspectiva diferente. Soldados do Araguaia (2017) investiga não só a guerrilha ocorrida ao longo do rio Araguaia, na região amazônica durante os anos mais duros da Ditadura no Brasil, assim como o próprio regime, pelo ponto de vista justamente de militares.

Presente na última edição da Mostra, o longa-metragem introduz, primeiro com seus depoimentos em off sobre imagens fragmentadas de um cotidiano em um ambiente tipicamente nortista, estes ex-soldados de baixo escalão que trabalharam nesta frente local, para depois de alguns minutos dar rosto a eles. Na maioria, então jovens da própria região – alguns, tendo sido dispensados ao passar pelo alistamento obrigatório de manhã, recebiam a notícia de que foram chamados para integrar o Exército Brasileiro, à noite na porta de casa – que foram convocados e usados por militares treinados apenas por saberem andar na selva e que, após quatro décadas, não são capazes de esquecer os seis anos de serviço, entre 1972 e 1978, ou seguir em frente. Sob a luz direta em um fundo preto, o interrogatório aqui é espontâneo, com cada um dos seis homens, aos poucos, colocando para fora os seus traumas.

Assim, gradualmente, Franca confere humanidade a estes indivíduos que foram peças e, ao mesmo tempo, vítimas de uma engrenagem sistêmica de repressão e violência por parte do Estado. Sofreram também torturas físicas e psicológicas de seus superiores, mas carregam o peso da culpa por terem sido testemunhas, na maioria das vezes, involuntárias de torturas, pois mesmo que evitassem ver, não podiam evitar ouvir; ou por não impedirem a morte de presos. E se, antes, suas famílias se orgulhavam por seus filhos fazerem parte deste dever patriótico, foram posteriormente alvos dessa violência institucionalizada da qual os recrutas não eram capazes de ir contra.

Um dos recursos utilizado pelo documentarista nesse sentido é, a partir de certo momento de emoção de um dos personagens, interpor os depoimentos deles com entrevistas de psicólogos e outros profissionais do projeto Clínicas do Testemunho em Marabá, Belém e Rio. Especialmente por estes revelarem seu próprio preconceito inicial ao verem essa procura por ajuda de militares, até entenderem que eles também tinham seus traumas, que permaneceram ocultos por anos, em um ambiente e uma cultura que preza pelo silenciamento. Por isso, apesar de comentarem para as câmeras sobre o sadismo de seus comandantes, porém sem citar nomes, fica claro como o medo ainda é uma sombra da qual não conseguem se livrar.

Não por menos, a escolha de uma fotografia acinzentada ao capturar os fragmentos de suas vidas esquecidas, que levam desde a “volta para casa” sem a chance de plano de carreira ou alguma indenização pelo desligamento e com seus fantasmas do passado o perseguindo constantemente; e também os que nunca serão esquecidos de suas memórias, em uma escolha do diretor em emulá-las através de imagens evasivas de armas, quartéis, farda e florestas em uma discreta encenação, que se sustenta pelo desenho de som, desde o estremecedor barulho do helicóptero na abertura. Descartáveis como tantos outros em uma sociedade que pouco olha o indivíduo, eles são desacreditados pelos militares e visto como algozes pelos civis, enquanto as consequências dos anos no combate à Guerrilha do Araguaia estão marcadas em seus comportamentos até hoje.

Portanto, o maior feito do novo documentário de Belisario Franca é o de abrir o diálogo em tempos tão extremistas quanto os atuais e pontuar que, atrás das fardas também existem seres humanos. Às vezes, tão vítimas quanto os que estão nas suas miras de balas disparadas por aqueles que, detrás de suas mesas, controlam este sistema à qual a sociedade brasileira carrega como uma herança maldita.

 

Soldados do Araguaia (2017)

Duração: 73 min | Classificação: 14 anos

Direção: Belisario Franca

Roteiro: Belisario Franca e Ismael Machado (veja mais da equipe técnica)

Produção: Giros Produtora

Distribuição: Urca Filmes

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