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  • Foto do escritorCauê Petito

MOSTRA SP 2017 | Dia 12 – Partículas de vidas

Atualizado: 1 de mai. de 2021

Frações de vidas surgem no mural do filme alemão Sexo, Piedade e Solidão (2017) e outros destaques desta última segunda-feira da 41ª Mostra, coma a animação chinesa Tenha um Bom Dia (2017), entre outros títulos do dia.

 

Cena do filme alemão Sexo, Piedade e Solidão (2017) | Foto: Divulgação (Mostra SP)

"Quando tudo é destruído, o que resta para cada partícula é girar em torno de si mesma". Esta frase de abertura, sussurrada por uma garotinha como narração em off, ecoa no vazio, enquanto duas porcelanas em forma de gato são quebradas, e resume de forma bem literal Sexo, Piedade e Solidão, o drama da tragédia e das tolices, dirigido pelo alemão Lars Montag. Entre os fragmentos da porcelana estraçalhados diante de nós, três capítulos – o sexo, a piedade e a solidão do título – se desenrolam, acompanhando 13 personagens de diversas classes sociais, idades, dilemas, religiões e imbecilidades, no atual cenário político e social alemão, em situações que se entrelaçam umas com as outras, num filme que ecoa Magnólia (1999) e até mesmo Southland Tales (2006), extravaganza cult de Richard Kelly.

Robert (Jan Henrik Stahlberg), um policial bem articulado com um racismo oculto que surge em momentos de descontrole, encontra sua amiga Carla (Friederike Kempter), que possui problemas de ansiedade e dificuldades para se impor, em uma estação de metrô. Conversando com a amiga, ele usa o jovem muçulmano Mahmud como uma espécie de "modelo vivo" para provar um argumento pra ela, o que resulta em ofensas raciais e reações exageradas e termina com a queda do imigrante da escada da estação. No hospital, Mahmud conhece a adolescente Swentja (Lilly Wiedemann), que aguarda a vistoria de seu braço quebrado, e propõe para ela que ele a use sexualmente, oferecendo dinheiro em troca. Julia (Eva Löbau) acabou de terminar um relacionamento com Uwe (Peter Schneider). Com necessidades sexuais não atentidas, ela procura por tal satisfação de variás formas. Já ele recorre aos sites de namoro online. Em um desses encontros, ele conhece a talentosa artista com problemas de autoestima, Janine (Katja Bürkle), que por acaso utiliza o pai de Swantja (Rainer Bock), Robert, como modelo vivo.

Essa é apenas parte dos personagens – o elenco conta com a atriz Maria Hofstätter, presente também em Feio, que está na seleção da Mostra – e dos conflitos contemporâneos que são abordados aqui, que por mais críveis que sejam – esta é mais uma produção com a presença constante da crise dos refugiados, que assombra seus personagens de diversas formas e dialoga até mesmo nos cenários, pichados com diversas mensagens, de variados tons –, são abordados com um tom fabulesco, com a melancólica e etérea trilha orquestrada de Konstantin Gropper embalando até mesmo os momentos cômicos. O aspecto visual do filme concebido por Montag e seu diretor de fotografia Mathias Neumann possui uma artificialidade de cores saturadas, que segue nesta narrativa de fábula, e as ironias que o filme propõe são tão cômicas quanto trágicas. E a decadência de suas figuras recebe a cereja no topo do bolo na sequência musical onde cada um deles canta uma música de prosperidade e individualidade.

Individualidade de partículas que, girando em torno de si mesmas, falharam em perceber que é justamente isso que desencadeia uma sequência de atos onde todos são afetados, sendo responsáveis pelas próprias consequências – boas ou ruins – que os afligem.


ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 5

30/10/17 - 17:00 - Sessão: 1169 (Segunda)

 

As relações entre julgamento e culpa que o angustiante Custódia, vencedor dos prêmios de Melhor Direção e Melhor Primeiro Filme no Festival de Veneza, coloca na mesa dialogam menos com seus personagens e mais com nós mesmos.

Ambientando sua primeira cena na audiência que dá título ao filme, a da custódia do jovem Julien (Thomas Gioria), o diretor estreante em longas-metragens, mas com um curta indicado ao Oscar, Xavier Legrand, nos coloca numa situação de julgamento. Acompanhamos os argumentos da mãe de Julien, Miriam (Léa Drucker) e de seu pai, Antoine (Denis Ménochet). O elefante na sala: Miriam quer a guarda completa de Julien, que deixa bem claro em sua carta – estranhamente formal – de que não possui desejo algum de ver seu pai, alegando agressões à sua irmã mais velha, Joséphine (Mathilde Auneveux). A juíza que toma conta do caso é incisiva: "vamos ver qual de vocês é o menos mentiroso".

Posicionando inteligentemente tal cena já em sua introdução, Legrand nos coloca desde o início em estado de alerta, analisando as ações seguintes superficialmente a fim de identificar, afinal, quem está certo nessa situação. Não tarda, no entanto, para constatarmos o incontestável e nos sentirmos culpados por duvidar da situação e daqueles relatos em primeiro lugar, numa narrativa realista e precisa em suas construções de tensão, em seus retratos do abuso emocional, físico e mental que Julien, sua mãe e sua irmã são sujeitados.

O mal estar acaba sendo, então, coletivo. Ao nos situar constantemente à partir do ponto de vista de Julien, o diretor nos obriga à presenciar, de forma íntima, o estrago emocional e psicológico imposto sobre ele, com closes extremos e desconfortáveis que só são elevados pela excelente atuação do jovem Thomas Gioria. De certa forma, a curiosidade do espectador pela reviravolta, pela catarse, pela expectativa de uma resolução cinematográfica acaba nos condenando, também ao abuso. Não há nada de cinematográfico na abordagem que Legrand adota. Ao concedermos a nós mesmos a dúvida, ao deixarmos que Antoine entre na vida daqueles personagens e de certa forma em nossa própria, independente dos sinais, acompanhamos o triste e violento desenrolar de eventos com a sensação de culpa.

O que resta, no final, é a nossa renegação ao mero testemunho, o ouvinte, o espectador da tragédia, como a senhora do apartamento que aparece em três momentos distintos. O nó na garganta e a sensação de exaustão que nos acompanha na saída vem com o derradeiro plano final: a porta que se fecha diante de nós, os juízes, ocultando uma cena de dor irreparável que poderia ter sido evitada se tivéssemos enxergado o que esteve sempre em nossa frente.

CINESALA

30/10/17 - 17:30 - Sessão: 1127 (Segunda)

 

Quando conhecemos o nosso protagonista, O Motorista de Táxi do título, vivido pelo ótimo Kang-Ho Song, ele canta, animado e dançante, uma música romântica que toca na rádio, enquanto dirige seu táxi para pegar o próximo passageiro. Não seria, no entanto, um bon vivant: viúvo, endividado e com uma filha pequena para criar, o motorista é, na verdade, o esteriótipo do taxista rude, mal informado e pão duro, que se preocupa apenas se receberá cada centavo da corrida de cada dia. A difícil rotina deste taxista da ilha de Seul muda, no entanto, quando ele é contratado – ou melhor, quando ele rouba a oportunidade de outro taxista – por um jornalista alemão, Peter (Thomas Kretschmann), para levá-lo até a cidade de Gwangju por um preço absurdo que o fará quitar suas dívidas. O que o taxista não sabe, no entanto, é que o local está em estado de lei marcial e os cidadãos, liderados por um grupo de estudantes, estão reivindicando sua liberdade no ato chamado de Revolta de Gwangju, evento real que aconteceu na Coreia do Sul, em maio de 1980.

Representante sul-coreano no Oscar, O Motorista de Táxi possui todas as características intrínsecas ao cinema do país, como uma dramaticidade elevada predominante, um passeio pela comédia, aventura, drama e suspense, e uma expressividade visual muito característica. Desta forma, o filme do diretor Hun Jang opera realmente como um grande épico. Se esse possível melodrama incomoda em partes, ele consegue ao mesmo tempo passar uma sensação de autenticidade justamente por elementos culturais, pela sensação de honestidade com o próprio estilo.

As situações surreais que partem da premissa ancorada em eventos verídicos não prejudicam o todo, já que o diretor e seus montadores, Kim Sang-Bum e Kim Jae-Bum, sabem quando dar atenção aos momentos mais pesados, como os confrontos de manifestantes contra os militares, que são fotografados por Go Nak-Seon sem o mesmo dinamismo das outras cenas, de uma forma quase documental que confere essa verossimilhança. É uma pena que em seu longo clímax o filme se renda a clichés tão óbvios e – novamente – típicos de produções sul-coreanas, que são extrapoladas mesmo neste tipo de cinema, e aí a situação real e densa se perca nas fantasias cinematográficas do espetáculo que seu diretor constrói.

O que se sobressai, no entanto, é a jornada de seu protagonista, assim como a relação que é construída com o jornalista alemão. Numa produção que se presta a todo instante a ressaltar a falta de comunicação de várias formas, é catártico quando laços são formados, e o momento de respiro no qual estes personagens têm a oportunidade de simplesmente dar risada e relaxar na casa de um dos habitantes de Gwangju é belo. Momento que é abruptamente interrompido por um tiro, numa das transições efetivas entre dois tipos de realidade.

O Motorista de Táxi é melodramático. Daquelas produções exageradas que utilizam um tragédia real como impulso para uma jornada de personagem mais básica. É nessas sensibilidades tão características de seu lugar de origem, no entanto, que ele consegue achar sinceridade, com atuações genuinamente emocionantes, principalmente de sua dupla principal, vivida por Kang-Ho Song e Thomas Kretschmann, e momentos que pregam aquela mensagem da empatia e da liberdade de expressão vista algumas vezes nesta Mostra. Às vezes, o arroz e feijão do melodrama funciona.


RESERVA CULTURAL - SALA 2

30/10/17 - 21:40 - Sessão: 1191 (Segunda)

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - AUGUSTA SALA 1

31/10/17 - 14:00 - Sessão: 1228 (Terça)

 

"Equilíbrio: condição de um sistema em que as forças que sobre ele atuam se compensam, anulando-se mutuamente". Não poderia haver nome melhor para a triste obra do italiano Vincenzo Marra, sobre Giuseppe (Mimmo Borrelli), um padre em crise de fé que decide voltar para sua região natal. Substituindo o eloquente e carismático padre Don Antônio (Roberto del Gaudio) numa vila dominada pelo crime e corrupção, o determinado padre tenta, a todo custo, ajudar aquelas pessoas, apenas para aprender que isso será mais difícil e complexo do que ele imagina.

Como diz o próprio Don Antônio, o equilíbrio deve ser mantido. Dessa forma, Giuseppe acaba percebendo, lentamente, que a igreja convive junto com esse crime organizado, não interferindo em seus assuntos, mesmo que eles prejudiquem a maior parte de sua população. O que Antônio deseja é que Giuseppe não interfira, e dê apoio para aquelas pessoas da forma mais conhecida: pedindo sempre para que tenham fé e rezem seus terços.

Ao final de Equilíbrio, a dúvida se instala. Seria mesmo possível salvar aquelas pessoas? Giuseppe tenta a todo custo propagar a bondade, não só a divina (mostrando-se um indivíduo entusiasmado, que, porém, não empurra sua palavra), mas a bondade pura de fazer bem ao próximo, de ajudá-los e sacrificar a si mesmo para que todos eles tenham uma vida melhor. Infelizmente, o mundo atual não é tão simples, e vemos o personagem ser testado física e psicologicamente, culminando no plano em que Giuseppe, em um nu frontal, toma banho num desespero e necessidade de purificação que parece nunca vir.

Adotando uma estética documental desde seu primeiro plano, na qual Giuseppe caminha em direção à câmera inquieta, enquanto pode-se ouvir as vozes distorcidas das pessoas nos outros aposentos – algo característico dessas filmagens documentais, Equilíbrio frequentemente segue seus personagens em longos planos, como se estivesse a todo momento querendo relatar algo real.

Com boas atuações, o italiano Equilíbrio é uma obra triste que nos faz questionar, através de seu protagonista, nossa própria moralidade. O padre Giuseppe é confrontado, em determinado momento, sobre sua ação, que pode prejudicar a todos naquela vila, mas salvaria a vida de uma garota. "É a vida de uma garotinha", diz o padre, que só quer, a todo custo, fazer a bondade.

Bondade que vem não pelo caminho divino, mas humano. Infelizmente, na triste realidade vista aqui, há a necessidade pelo equilíbrio.


ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - FREI CANECA 4

30/10/17 - 13:30 - Sessão: 1162 (Segunda)

 

Seja por câmeras de vigilância ou planos estáticos de 9 minutos, do ponto de vista dos mais velhos ou dos mais novos, e das mais variadas classes sociais, o cinema do cultuado Michael Haneke sempre explorou o mal estar – ou mesmo a maldade em sua essência – e suas raízes. E neste Happy End, o indicado da Áustria ao Oscar, não é diferente, mesmo que a exploração dê mais espaço ao simples relato, e de que a misantropia do cineasta venha menos como um soco perverso e mais como uma risada irônica.

Partindo dessa ideia, Happy End realmente é mais parecido com o seu Funny Games (1997/2007) do que com outras obras de sua filmografia, em que há uma espécie de honestidade – ou o máximo de honestidade permitida por um cineasta conhecido pelos jogos aos quais submete sua audiência – já em seus títulos, descrevendo o projeto como ele é: A Professora de Piano (2001), A Fita Branca (2009), 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994). Se muitos ainda vêem tais literalidades como uma forma de jogo em si, não há neste o puro sarcasmo como nos "jogos divertidos" de Funny Games – que possui o título de Violência Gratuita no Brasil. Estamos falando de um filme de Michael Haneke, então é claro que, objetivamente, não haverá um final feliz, certo?

Sendo um final feliz algo subjetivo para Haneke, como ter sucesso em seu suicídio ou o desmantelamento de uma família burguesa privilegiada e avulsa ao mundo ao seu redor, Happy End opera como um drama cômico, retratando as relações conflitantes dessa família burguesa na alto sociedade francesa. Se em Caché (2005) o confronto dos atos passados, preconceituosos e racistas de seu protagonista – e de uma França da alta patente que ocultava tal histórico – o assombravam e causava a reflexão, na tragicomédia que é seu último filme, não há reflexão e seus personagens continuam vivenciando uma vida de banalidades, falta de comunicação e empatia – como num momento em que um personagem banaliza uma clara tentativa de suicídio.

Estabelecendo que tais relações provocam males e efeitos colaterais até mesmo nas novas gerações, criando psicopatas e pessoas deprimidas, a obra acompanha cada ato de futilidade danosa com a habitual calma de Haneke, que é sempre efetivo em causar a sensação de temor pelo pior, pela tragédia que parece estar sempre à espreita.

Casualmente se divertindo com a nova geração – e não me refiro à jovem Eve vivida por Fantine Harduin –, substituindo as filmagens de VHS de projetos anteriores por lives de Instagram/Snapchat e telas de Facebook, o diretor inclui também algumas referências, como o destino que o Georges, vivido por Jean-Louis Trintignant, dá à sua esposa, idêntico ao da obra anterior de Haneke, Amour (2012) – e "divertindo" talvez não seja a palavra mais adequada –, transformando esta obra numa espécie de sequência não oficial daquela.

O longa ganha força quando se atém aos contrastes de gerações, como no diálogo sentimental, cruel e cômico dividido pelo avô George e a jovem Eve, em posições emocionais tão tão contrastantes assim, o que torna o laço final de ambos apenas mais triste.

No entanto, essa tristeza não é refletida na tela, já que Haneke prefere punir aquelas pessoas pela vida inconsequente e egoísta que levam – com um olhar claro para a crise dos refugiados, presente na 41ª Mostra, em produções como Human Flow e O Vento Sopra Onde Quer. E a espécie de catarse e reflexão vista em obras como Caché não tem espaço no inferior Happy End. Para o diretor, tal catarse só pode vir com a miséria daquelas pessoas, que é festejada.


CINEARTE 1

30/10/17 - 16:10 - Sessão: 1116 (Segunda)

 

Em determinado momento da produção austro-ucraniana Feio, de Juri Rechinsky, acompanhamos uma mulher hospitalizada gritando de dor. Seu namorado, inicialmente ao seu lado, não aguenta os dolorosos gemidos. Passa as mãos inquietas sobre a cabeça e fuma consecutivos cigarros, não suportando aquela situação e sua impotência, sua inaptidão em ajudar de alguma forma.

Tal sentimento é partilhado por nós, já que a desagradável cena se prolonga – intencionalmente – por alguns minutos. Rechinsky quer que sintamos aqueles males, nos colocando na pele de seus personagens e nos obrigando a presenciar, quase que em tempo real, aquelas dores. Tentativas de suicídio, sexo, discussões constrangedoras de família, um banho particularmente doloroso, a deterioração mental de uma mulher com Alzheimer e até mesmo as contemplações de melancolia silenciosas e íntimas daquelas pessoas. Ele quer que presenciemos seus registros, por mais feios que sejam.

Com um filme anterior que já sugere o tipo de cinema no qual o diretor parece proposto a realizar, o documentário Sickfuckpeople (2013), a arte do pôster de Feio também é cirúrgica em passar a mensagem: uma mesa de família onde quatro pessoas estão com suas cabeças em seus próprios pratos, afogadas, perdidas fora e dentro de si mesmas.

Esse núcleo familiar é importante, já que tais relatos estão todos, de alguma forma, conectados. A garota que se contorcia de dor é Hannah (Angela Gregovic), e seu namorado, Jura (Dmitriy Bogdan). Ambos estiveram em um acidente de carro, mas essa é só a a ponta do iceberg da tristeza em um relacionamento muito mais complicado. Além disso, acompanhamos a relação de ambos com suas respectivas famílias, que possuem suas desgraças internas. Tais infortúnios são divididos, também, geograficamente, com a família de Hannah na Áustria e a de Jura na Ucrânia. A mãe de Hannah, Martha (Maria Hofstätter), está nos estágios iniciais de Alzheimer. Já a de Jura(Larisa Rusnak) tem dificuldade em lidar com a autodepreciação do filho, pedindo desesperadamente para que ele simplesmente diga que ama, algo que o mesmo não consegue, já que ele não é capaz de amar sequer a si mesmo.

A direção de fotografia de Sebastian Thaler e seu pai Wolfgang Thaler é interessante. De uma elegância e plasticidade que transformam cada composição em algo prontamente belo, ela contribui ainda mais com a angústia que se instala, já que aquelas situações contradizem a beleza com que tais imagens são registradas. Imagens que insinuam beleza, mas possuem algo de errado. Este algo são seus personagens e suas complicadas relações.

"Estou sentindo seu coração acelerado. Mas não sinto o meu", diz Hannah para Jura, numa cena onde implora para que ele transe com ela. O "I feel sick (eu me sinto mal/doente)" que Martha diz para seu marido, bêbada e prestes a vomitar, é trágico por seu duplo sentido. Em ambas as cenas, o colapso. Com Hannah e Jura, a inexpressão após o sexo. A constatação de que não conseguem sentir nada. Já Martha dorme completamente vomitada em seu marido, ambos ignorando – ou quem sabe, reconhecendo – a incapacidade de se prepararem para a situação na qual terão que lidar nos meses seguintes. O frio congelante dos pequenos aposentos ucranianos contra o calor aconchegante da casa luxuosa na Áustria. Ainda assim, nesses contrastes, encontra-se a união. A depressão é universal.

Com um design de produção inspirado – os cômodos em que Martha aparece, unanimemente brancos, refletem o triste estado mental da personagem que está por vir – e imagens evocativas, o diretor Juri Rechinsky nos submete ao desespero de seus atormentados personagens com uma câmera serena e estática, tal como Michael Haneke, presente na mostra com Happy End, faria. Entre estas imagens, há aquelas que talvez sejam as mais intrigantes do longa. Em preto e branco e extremamente granuladas – o único momento em que a plasticidade, a nitidez é abandonada –, acompanhamos cenas de uma estrada arenosa; alguém deitado; um vislumbre de um olho. Momentos que, desconexos, parecem como fragmentos de memória, de calmaria, de tempos melhores, talvez. Nunca saberemos. Em seus recortes da decadência, o filme termina com o anúncio da vida. "Você será mamãe", sussurra Hannah para Martha, que encontra-se já em seus estágios finais de Alzheimer e com um marido infeliz que a trata como uma criança bagunceira.

Após as imagens vistas em Feio, não há muito que possamos sentir com esta informação além de temor. Pela mãe, pelo pai, por suas famílias e pela criança, que será trazida a um mundo de dificuldades e angústia, habitado pelas pessoas infelizes das quais presenciamos – na 1h32 de projeção que parece consideravelmente mais longa – seus momentos mais importantes. Momentos estes que nem sempre são bonitos.

CINEARTE 2

30/10/17 - 22:00 - Sessão: 1124 (Segunda)

 

Tenha um Bom Dia

As ruas e aposentos da pequena cidade na qual se passa um dos destaques do Festival de Berlim, a animação chinesa Tenha um Bom Dia, estão a todo momento preenchidos por pôsteres de filmes, cartazes de games e referências à cultura pop, sobretudo ocidental. As figuras que a habitam, criminosos, delinquentes e perdedores, todas singulares e exóticas, transformam cada diálogo do cotidiano num destrinchamento de algum aspecto social e cultural do mundo contemporâneo, e as infelizes coincidências que os fazem ter os caminhos cruzados são tão cômicas quanto trágicas.

Tenha um Bom Dia poderia muito bem se contentar em ser apenas mais um desses exercícios de estilo genéricos influenciados pelo cinema de Quentin Tarantino e dos irmãos Coen, com seus diálogos espertinhos, personagens excêntricos, numa comédia negra de erros, mas ele acaba sendo mais interessante do que parece, em suas referências que ganham uma nova dimensão decorrentes do local em que se passam.

Aqui, tais imagens representam todo um ideal cultivado pela influência de uma cultura intrusa nessa pequena cidade chinesa. Seus personagens discutem, bêbados, sobre começar um novo negócio, fazer um "dinheiro fácil''. "Bill Gates e Mark Zuckerberg largaram a faculdade", diz um deles. Um assassino de aluguel – fã de Rocky Balboa – recebe uma ligação sobre investimento de propriedade. No rádio de seu carro, ouvimos parte de um dos discursos auto-congratulatórios pós-vitória de Donald Trump.

E chegamos ao nosso protagonista, o motorista Xiao Zhang, que rouba 1 milhão de yuans de seu chefe, porque sua noiva precisa corrigir uma cirurgia plástica que deu errado. No grande esquema, Xiao Zhang é quase um McGuffin junto com a mala de dinheiro, já que passa a maior parte dos curtos 77 minutos de projeção desacordado, enquanto as personalidades que habitam esse universo tentam de alguma forma encontrar o dinheiro, com paradas ocasionais para conversarem sobre seu desejo de irem embora daquele lugar ou sobre O Poderoso Chefão.

O fato de que a exibição de Tenha um Bom Dia no Annecy International Animated Film Festival tenha sido vetada pelo governo chinês diz muito sobre a produção, que evidencia um lado que contradiz a ideia de prosperidade associada com o país, que já censurou, inclusive, um dos artistas de destaque desta 41ª Mostra, Ai Weiwei, responsável pelo cartaz e pelo filme de abertura desta edição, Human Flow.

Com uma animação de menos frames por segundo, quase precária, que ao invés de prejudicar a obra apenas atribui um ritmo mais cadenciado e até mesmo uma áurea de estranheza que funciona, o destaque da produção acaba sendo mesmo suas situações irônicas e comentários que tece em relação aos ideais corrompidos de seus decadentes habitantes.

Mesmo que não se aprofunde demais nestes temas, a animação Tenha um Bom Dia, escrita e dirigida por Liu Jian, evidencia o efeito prejudicial que o tal do "Sonho Americano" pode ter nas regiões mais desprivilegiadas, como se a cultura pop oriunda do país por si só fosse o suficiente para corromper indivíduos que idealizam erroneamente estes ícones, independente da nação em que se encontrem. E qualquer obra que pare para um interlúdio musical que relata sarcasticamente o desejo que seus personagens possuem de se mudar para outro lugar e começar uma nova vida em uma terra de maiores oportunidades – a coroa do American Dream – merece um mínimo de atenção.

ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA - AUGUSTA ANEXO 4

30/10/17 - 14:00 - Sessão: 1142 (Segunda)

MIS - MUSEU DA IMAGEM E DO SOM

01/11/17 - 16:50 - Sessão: 1387 (Quarta)

 

"Uma bosta". "Genial". "Não tem como dar nota menor do que 1?". Assistir às reações do público na sessão da 41ª Mostra para Bikini Moon, mais novo trabalho de Milcho Manchevski, era um estudo à parte. O indivíduo do meu lado, revirando-se de um lado para o outro em sua poltrona e cutucando sua sonolenta namorada, perguntava "que horas o filme acabava?". Quando um louva-deus gigante apareceu em cena, então, num filme de ficção sobre um documentário que, por sua vez, é sobre pessoas fazendo um documentário sobre uma moradora de rua e suposta ex-veterana da guerra no Iraque, pôde-se sentir a fúria. Ela era até compreensível: estamos falando de uma obra que opera, a todo instante, na farsa.

A moradora de rua em questão é a auto-nomeada Bikini (Condola Rashad, brilhante), e o casal composto por Kate (Sarah Goldberg) e Trevor (Will Janowitz) encabeçam a equipe que pretende explorar a história de Bikini, e sua conturbada rotina que conta – entre a procura de um lugar pra morar e outras coisas - com a busca por uma suposta filha.

A Bikini de Condola Rashad é uma das forças que move esta obra. "É só Bikini, tipo Beyoncé... Madonna... ou Deus", explica a personagem para um funcionário público. Bikini é, supostamente, uma carpinteira, ex-veterana de guerra, mãe e possui sérios problemas mentais, sequela de um possível ataque nervoso na guerra. Imprevisível e fascinante, Bikini é uma força da natureza, despertando com seu carisma a curiosidade dos documentaristas, que anseiam cada vez mais por descobrir a real história de Bikini.

Mas a veracidade importa? É essa questão que Manchevski propõe. Logo, Kate e Trevor viram os documentados, as camadas vão aumentando, as intenções de cada um se confundem e a inicial desconfiança sobre as alegações de Bikini serem ou não reais acabam contagiando toda a narrativa, que mergulha e se perde nas lentes que captam este mundo. Ora numa câmera profissional, ora num celular, ora numa câmera velha de Bikini – curiosamente a documentação mais honesta, em sua sujeira despixelada e bruta.

Com críticas ácidas que não poupam ninguém, dos subúrbios, à "high class", ao exército americano, Manchevski adiciona mais uma camada, como se passeasse por vários filmes em um só. Tomando proveito da estética documental, ele salta no tempo e coloca seus personagens em situações cada vez mais absurdas, cada vez mais "fantásticas", passando por um drama de tribunal e culminando naquela que é a mais absurda do filme: na extrapolação desse jogo entre o real e o artificial.

Se as provocações do diretor são interessantes e possuem um conceito ótimo, há também a sensação de que elas acabam se autossabotando. A brincadeira das camadas que Manchevski aplica vale para Bikini também, que vai de figura complexa e interessante para apenas mais um objeto que o artista utiliza como intermédio para seu cinismo.

Fica a critério do observador, no final, escolher se embarca ou não nessa farsa.


CINEARTE 1

30/10/17 - 14:00 - Sessão: 1115 (Segunda)

*Sessões conjuntas com o curta O Fim do Tempo, também de Milcho Manchevski


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