BINGO – O REI DAS MANHÃS | Entre o sagrado e o profano
Atualizado: 1 de jun. de 2020
Vez por outra, a nostalgia é usada em vários produtos culturais contemporâneos como pura moeda de troca com o público. Embora seja ela que deva atrair boa parte dos espectadores e o filme se aproveite bem dela, Bingo – O Rei das Manhãs (2017) vai além da armadilha de ser apenas um veículo de recordações da infância e de outros bons momentos da plateia ao se firmar como o drama de um homem no centro de uma comédia, não de erros, mas do absurdo da televisão brasileira dos anos 1980. Um período, junto com a década de 90, em que este “tubo infecto” era capaz de misturar o sagrado e o profano na mesma telinha, aliando a inocência das crianças a doses de perversão, não apenas nos bastidores, no mesmo auditório de um programa infantil, de um modo impensável para os dias de hoje, quando essa faixa etária mal é contemplada pela TV aberta atual.
A história de um dos intérpretes do famoso Bozo, Arlindo Barreto, inspira, com bastante licença poética, a trajetória de Augusto Mendes (Vladimir Brichta em um papel que poderia ter sido de Wagner Moura, mas que se torna dele logo na primeira cena) que, na trama, dá vida a um semelhante personagem de um palhaço criado nos Estados Unidos e que ganha uma versão brasileira. Para evitar problemas com direitos autorais, além da mudança de nome do protagonista e de sua persona como Bingo, a emissora campeã de audiência se torna Mundial e a casa do programa em questão, TVP, no longa de estreia de Daniel Rezende com roteiro de Luiz Bolognesi.
Isso, talvez, ajude ambos a mergulhar fundo, evitando julgamentos até certo ponto, no retrato desse homem sempre intenso, mas também em crise. Augusto tenta se reconciliar com o passado, na herança artística perdida da mãe (a sempre certeira Ana Lucia Torre vivendo Martha Mendes, na alusão à atriz Márcia de Windsor, mãe de Arlindo); com o futuro, na relação com o filho Gabriel (Cauã Martins) que se perde no meio do turbilhão de sucesso; e com o presente, na dificuldade de lidar consigo mesmo, na qualidade de um famoso anônimo cuja falta de reconhecimento para si próprio o corrói. Por isso, a produção não se furta de começar justamente com o menino descobrindo o trabalho do pai em uma pornochanchada, gênero em que o ator atingira seu ápice até então, mas com pouco êxito na TV, onde ganha a chance da sua vida ao convencer, de uma maneira nada ortodoxa, o criador do personagem (Søren Hellerup) de que ele era o Bingo brasileiro – com todas as peculiaridades que isso significa.
O clima oitentista, que surge desde a primeira cartela, indicando o ajuste de um VHS, também está presente no ótimo trabalho de direção de arte, figurino, maquiagem e penteados, além da excelente trilha sonora. Se a seleção musical vai do single That’s Good do Devo ao one hit wonder 99 Red Balloons dos alemães da Nena, enquanto captura a cena punk paulistana que emergia na época com Tokyo, a banda do Supla, junto do pós-punk inglês do Echo & the Bunnymen, as composições de Beto Villares trazem os típicos sintetizadores dos anos 80. E assim a reconstituição de época também surge nas imagens aéreas, que chegam a reviver o antigo Mappin no centro da cidade de São Paulo, mas se transforma em um exagero estilístico de Rezende quando três tomadas do tipo vêm em sequência. Algo surpreendente justamente para alguém que fez a sua carreira como montador, ganhando renome por seu trabalho em Cidade de Deus (2002), mas que não torna sua direção nem a fotografia de Lula Carvalho menos impressionantes quando os planos-sequências se justificam narrativamente.
Contudo, o roteiro se sustenta na atuação magnética de Brichta ao lado de um elenco na medida – um destaque também para Augusto Madeira como o câmera Vasconcelos, que junto com seu trabalho em Malasartes e o Duelo com a Morte (2017), apresenta dois coadjuvantes carismáticos ao mesmo tempo no circuito comercial – e nesse embate paradoxal que carrega deste cenário da TV brasileira de décadas atrás. Assim, o artista “porra loka”, com sua vida de sexo, drogas & Gretchen (interpretada aqui por Emanuelle Araújo), confronta a diretora rígida profissionalmente e moralmente, a evangélica Lúcia (Leandra Leal, em uma representação que serve ao ponto de vista do protagonista, mas que ligeiramente supera o caminho óbvio que o mesmo, além do próprio público, pensou). Do mesmo modo, Augusto sente raiva de quem profanou uma deusa do teatro e da TV – a cena em que filho e mãe encenam como se fosse um casal de pretendentes é bem emblemática – enquanto ele mesmo fez isso com o ofício, quando a sua derrocada pessoal que o afundou no vício das drogas passa a afetar aquele lugar sagrado para o ator, ainda mais o palhaço – como já disse uma vez Domingos Montagner, que faz uma participação póstuma em Bingo –, que é o palco.
Bingo – O Rei das Manhãs (2017)
Duração: 113 min | Classificação: 16 anos
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luiz Bolognesi
Elenco: Vladimir Brichta, Leandra Leal, Augusto Madeira, Ana Lucia Torre, Cauã Martins, Tainá Müller, Emanuelle Araújo, Søren Hellerup, Pedro Bial e Domingos Montagner (veja + no IMDb)
Distribuição: Warner Bros. Pictures