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  • Foto do escritorCauê Petito

SUSPÍRIA – A DANÇA DO MEDO | Dançando com fantasmas

Atualizado: 1 de mai. de 2021


Dakota Johnson, Mia Goth e elenco em cena do filme Suspíria – A Dança Do Medo (2018), remake de Luca Guadagnino do clássico de 1977, dirigido por Dario Argento | Foto: Divulgação (PlayArte)

“Quando você dança a dança de outro, o criador se apossa de você”. É difícil não interpretar a frase como um comentário direto de Luca Guadagnino, diretor de Me Chame Pelo Seu Nome (2017), sobre o processo criativo de Suspíria – A Dança Do Medo (2018), seu remake do clássico cult de mesmo nome – com exceção do subtítulo – de 1977, dirigido pelo mestre do terror Dario Argento, e que finalmente chega aos cinemas brasileiros. Proferidas no novo filme pela misteriosa professora de dança Madame Blanc (Tilda Swinton) à Susie (Dakota Johnson), sua aluna e nossa protagonista, as palavras parecem evocar um sentimento entalado de frustração e angústia compartilhadas por seu diretor. Para deixar as coisas mais claras, esta nova versão possui uma cena de quase-possessão extremamente gráfica onde uma pobre dançarina é literalmente feita de marionete, sendo atirada de um lado para o outro do salão conforme sua colega de turma se apresenta em outra sala. Quanto mais intensos os movimentos corporais de uma, mais se estraçalham partes do corpo da outra, que tem seus ossos quebrados e chega até mesmo a urinar em si mesma, possuída pela performance da outra. A cena é quase literal em seu simbolismo, mas os temas de fantasmas incontroláveis do passado que este Suspíria irá se propor a abordar estão espalhados pelo filme muito antes da mesma acontecer.

O cinema de horror visto no original, uma herança da sensibilidade fílmica de Mario Bava, era engolido pelo surrealismo, com sua narrativa de lógica onírica, onde nunca se sabia o que era real e o que fazia parte de um sonho. Suas fortes cores primárias, aliadas com as já icônicas composições musicais da banda Goblin, atribuíam uma identidade muito específica e irretocável na proposta de Argento. A narração em off no original – outra adição que transbordava estilo e atmosfera –, ainda nos créditos iniciais, era econômica e dizia apenas o que precisávamos saber: “Suzy Banyon decidiu aperfeiçoar os seus estudos de ballet na escola de dança mais famosa da Europa, a célebre Academia de Friburgo. Um dia, às 9h00, embarcou no Aeroporto Kennedy, em Nova lorque, e chegou à Alemanha às 22h40, hora local.” À partir da premissa inicial, éramos expostos a um conto feminino de morte e magia, onde a protagonista descobria que a escola era na verdade um covil de bruxas que manipulavam suas dançarinas para propósitos mais nefastos. Suas pobres personagens tomavam atitudes irracionais; em determinado momento, uma delas se atirava contra uma pilha de arames farpados, numa cena que não fazia, narrativamente, muito sentido. Mas um pesadelo nunca faz, e em Suspiria (1977) nada se explicava e tudo se sentia.

A versão de Guadagnino já nasce, então, perseguida pelo fantasma da original. Como a maioria dos remakes, está fadada a “dançar a dança de outro”. Já nasce, também, com o estigma de um terror high class que vem na figura de seu próprio diretor, associado ao estereotipo de um cinema de arte mais pretensioso que, em tempos de “pós-horror”, gourmetizaria o cinema de gênero para que o mesmo pudesse ser validado. As próprias ambições temáticas de seu diretor, vistas superficialmente, podem cimentar tais julgamentos. O letreiro que precede os créditos iniciais – “seis atos e um epílogo numa Berlim dividida” –, é um indicativo de que o cineasta pretende pintar a história com um subtexto político inexistente no anterior, pode dividir os defensores e detratores da obra prontamente. Saem as vívidas cores do original e entra uma paleta de cores acinzentada, sóbria. A trilha incessante de Goblin dá espaço às composições mais contidas e pontuadas de Tom Yorke, líder da banda Radiohead, e uma hora e meia de duração se torna duas horas e meia aqui.

Apesar destas diferenças tonais, o novo filme segue a premissa do original de forma bem fiel, com a maioria dos personagens, antes meros avatares para serem utilizados segundo as convenções do gênero, presentes e com personalidades expandidas. A Susie – com “e” – da vez é Dakota Johnson, perseguida pelas memórias da morte de sua mãe após uma infância dolorosa. Sua amiga americana, Sara, é vivida por Mia Goth. Madame Blanc, antes sem arco dramático e bem esquecível, ganha vida na pele de Tilda Swinton. Uma adição importante, no entanto, é o psiquiatra Josef Klemperer – também vivido por Swinton sob um pseudônimo –, que representa o ponto de vista cético e masculino na história, uma das adições mais interessantes do longa, tentando entender os mistérios que se passam na academia de dança que enlouqueceu uma de suas pacientes, Patricia (Chloë Grace Moretz), sendo que ele também é assombrado pelos horrores da guerra e pela perda de sua esposa. Não é só a Alemanha pós-guerra que está dividida: as professoras (e bruxas) da academia, que só abriga mulheres, também se dividem em suas ideologias na votação para decidir a nova regência, disputada entre Blanc e a misteriosa Helena Markos, que só aparece de fato no último ato da história.

O que Guadagnino faz, com sua exploração detalhada da psique de seus personagens, até mesmo dos coadjuvantes, é realmente a expansão dos temas do original. Como na adaptação de uma obra literária, o cineasta utiliza a sensação provocada em si mesmo pelo original e parte destes sentimentos para contar sua própria história. Se um elemento importante do terror é a empatia com seus personagens, o diretor, que já se provou extremamente adequado para contar histórias sensíveis, consegue fazer com que nos interessemos por cada uma das figuras vistas aqui à partir do roteiro de David Kajganich.

A sua própria direção representa esforços comparáveis com aqueles de nossa protagonista, que ganha o papel principal na performance “Volk” criada pela madame Blanc no período da guerra – não por acaso uma performance que gira em torno do empoderamento feminino naquele período tão conturbado. O diretor utiliza de todas as ferramentas disponíveis, por vezes abandonando uma única estética, abraçando diversos estilos: lentes grande angulares, câmera na mão inquieta e planos mais curtos, com cortes secos entre cenas; mas também transições de fade ins e fade outs mais elegantes, com planos alongados, em escolhas que atribuem, muitas vezes, as mesmas sensações de angústia e opressão. Até mesmo a diminuição de frames por segundo é utilizada nessa experimentação, transformando algumas cenas em uma espécie de stop motion que causa estranheza.

Estranheza que é também causada de início pelo personagem do doutor Kempler. Como a maioria dos temas e momentos de A Dança do Medo, a eficácia de sua construção só se evidencia enquanto refletimos sobre a mesma e a escolha de que ele fosse interpretado por Swinton sob inúmeras próteses. Se a frágil voz de sua intérprete serve para construí-lo como uma figura vulnerável, a impressão de que o papel seja uma mera trucagem para ressaltar o talento de sua atriz se esvai quando pensamos no que, conceitualmente, a escolha representa, já que o personagem é um dos mais complexos e interessantes de uma narrativa composta majoritariamente por mulheres, que discute inclusive o feminismo de várias formas – e o único papel masculino de importância é também de uma mulher.

É apenas curioso que a maioria das intenções temáticas de Guadagnino atinjam sua plenitude no arco dramático de Kempler, com a participação especial de Jessica Harper, protagonista do Suspiria original, vivendo a esposa do psiquiatra, separada do mesmo durante a guerra. A memória de sua musa desaparecida é a personificação do passado para o personagem e para nós, que muitas vezes pode ser apenas uma miragem, idealizada, intocável. Quando tais intenções são evidenciadas, todo o tipo de dívida histórica explorada dentro e fora do filme está prestes a ser cobrada e, como as bruxas fazem com o trágico personagem de Klemper, Guadagnino nos ilude, tortura e confunde – refletindo o próprio filme de ritmo cadenciado e temas que se empilham em seus atos apenas para serem amarrados no derradeiro ato 6 e seu epílogo.

Ato final que, ao conter um clímax ambientado numa câmara banhada no vermelho neon primário de argento, onde ocorre uma gráfica chacina – embalada com a melancólica canção Unmade de Tom Yorke –, se torna um emocionante ato de liberação espiritual não só para suas personagens mas para seu diretor e audiência. É nesta bela cena que Suspíria – A Dança Do Medo alcança a catarse e justifica sua existência, ao se entregar de vez ao espírito do original, como se não conseguisse fugir do mesmo. Mais do que isso, a entrega à violência vista na cena tem propósito narrativo, como se o diretor tivesse, antes de mais nada, que desconstruir a obra original e questões do próprio gênero – sem cinismo – onde é inserido para que pudesse, finalmente, se entregar a elas.

O criador realmente se apossa de você, no final das contas.

 

Suspíria – A Dança Do Medo (Suspiria, 2018)

Duração: 152 min | Classificação: 16 anos

Direção: Luca Guadagnino

Roteiro: David Kajganich, baseado nos personagens de Dario Argento e Daria Nicolodi

Elenco: Chloë Grace Moretz, Tilda Swinton, Doris Hick, Malgorzata Bela, Dakota Johnson, Angela Winkler, Vanda Capriolo, Alek Wek, Jessica Batut, Elena Fokina e Mia Goth (veja + no IMDb)

Distribuição: PlayArte

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