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Foto do escritorNayara Reynaud

FRAGMENTADO | A fragmentação contemporânea

Atualizado: 7 de mai. de 2020


Jessica Sula, James McAvoy e Anya Taylor-Joy em cena do filme Fragmentado (2017) | Foto: Divulgação (Universal Pictures)

Um homem que sofre de transtorno dissociativo de identidade e desenvolveu, ao menos, 23 personalidades. O protagonista do novo trabalho de M. Night Shyamalan foi concebido originalmente para ser um personagem de outro filme dele, porém, acabou ganhando vida em uma história própria, em um projeto fermentado há 17 anos. Só que Fragmentado (2016) não podia vir em hora melhor, não só para marcar uma virada na carreira de um dos cineastas que mais divide opiniões entre a cinefilia, mas também por levantar discussões muito atuais e encontrar James McAvoy no momento certo para viver este desafio múltiplo e sustentar uma narrativa bem delicada.

No longa, o ator encarna “só” oito personalidades de Kevin, além do próprio. Segundo o diretor durante coletiva de imprensa em São Paulo, na última terça (21), para divulgar o filme no Brasil, cada dia de filmagem era reservado para uma dessas personagens, a fim de facilitar o trabalho de McAvoy, já complicado a partir do momento em que as personas dentro de seu protagonista começam a divergir pelo poder de ação da mente e do corpo que compartilham.

É quando o metódico e fanático Dennis assume o controle que este homem sequestra três jovens na saída da festa de aniversário de Claire (Haley Lu Richardson, do coming of age Quase 18 e da série Caminho da Recuperação, ambos de 2016). A aniversariante é levada junto de sua amiga Marcia (Jessica Sula, protagonista da mesma série, e que também participou de Skins em 2011 e 2012) e de Casey Cooke, uma quieta e às vezes agressiva colega de escola, interpretada precisamente por Anya Taylor-Joy, do excelente A Bruxa (2015). As jovens ficam presas em um porão, ambiente que Shyamalan disse gostar e utilizar muito, pois, por não se saber “o que acontece lá fora, é muito estimulante para a imaginação”, mas que aqui serve como representação da claustrofobia e incertezas típicas da adolescência.

Carregando o mesmo ar de estranheza pelo qual ficou marcada Tomasin, protagonista do terror histórico em que a atriz apareceu para o público, Casey é a única que estabelece algum tipo de conexão com o sequestrador ao passar a compreender um pouco da multiplicidade de sua mente, e também por outra razão levantada através das lembranças dela aos seis anos de idade. Talvez desnecessários e resultantes da falta de confiança infundada do cineasta na capacidade de sua atriz e de seu público, os flashbacks servem para apresentar mais um(a) ator/atriz mirim a se observar, com a pequena Izzie Coffey.

Na trama, há a Dr. Fletcher, vivida por Betty Buckley de Carrie, A Estranha (1976), como psicóloga de Kevin, enquanto há muita pesquisa na área para a elaboração do roteiro, já que este distúrbio psicológico, geralmente despertado após traumas na infância – e aqui há uma interessante abordagem da questão do abuso –, sempre despertou a curiosidade de M. Night. Quase tudo observado no paciente fictício é verídico, afirmou o diretor, como a capacidade das diferentes personalidades se manifestarem fisicamente também de modos diversos, a exemplo do caso real de uma identidade que desenvolve diabetes, mas as outras não apresentarem a mesma condição. Ele explicou aos jornalistas que as múltiplas consciências estão ativas em todos os momentos, mesmo quando não estão “na luz”, termo utilizado pelo próprio filme, e que existe uma organização interna em acionar a persona dependendo da situação.

O cineasta ainda destacou, na sequência, a importância de ter James McAvoy, que já havia feito um papel de outro homem com uma desordem mental, no caso um bipolar/Borderline em Filth (2013) misturando as “trevas e a luz do personagem”, assim como a de sua equipe técnica, formada por um time jovem, incluindo Michael Gioulakis, fotógrafo de Corrente do Mal (2015) que cola a sua câmera nas personagens para adentrar em suas mentes.

Além do óbvio e profundo olhar psicológico sobre Dennis, sua amiga fanática Patricia, o menino Hedwig e todos os outros que habitam o mesmo homem e são tão bem defendidos por McAvoy, o mais interessante é que a obra permite, através desse mosaico de identidades, uma leitura social muito pertinente sobre a fragmentação do indivíduo na pós-modernidade.

O “Eu social” sempre assumiu caráteres diferenciados dependendo dos ambientes de socialização, como a família, a escola, os amigos, o trabalho, a igreja e etc., mas era marcado por certa coerência na modernidade, enquanto hoje se abre ao contraditório. As redes sociais permitiram às pessoas exercer mais a sua pluralidade interna, adotando um “Eu” diferente em cada uma das plataformas digitais, com cada um de seus amigos ou usuários virtuais e a cada nova discussão que surge nesta Ágora digital. Como diz o sociólogo francês Michel Maffesoli, a contemporaneidade não comporta uma identidade homogênea.

Assim, a própria obra carrega em si esta fragmentação do personagem e dos tempos atuais. “Interessante, pra mim, era mudar o gênero do que você está assistindo”, declarou M. Night, afirmando que a intenção era fazer o espectador pensar, no início, que se tratava de um filme de terror, do tipo exploitation como Jogos Mortais, para depois ir ao thriller psicológico, que domina boa parte da narrativa e, por sinal, traz o melhor de Fragmentado. No terceiro ato, o longa segue por um caminho, como o de Lucy (2014) e Sem Limites (2011), que são sobre “o que a mente e o corpo são capazes”, disse o diretor sobre essas ficção científicas que exploram e imaginam ao máximo as potencialidades humanas.

Só no clímax, ele se entrega ao sobrenatural, em uma constante discussão sobre a fé, não religiosa, mas no extraordinário, que marca a cinematografia, para muitos, irregular do cineasta de origem indiana que cresceu nos Estados Unidos. “Vivemos em tempos medíocres, Sra. Dunn. As pessoas estão perdendo a esperança. É difícil crer em coisas extraordinárias dentro delas mesmas e dos outros. Espero que mantenha a mente aberta”, diz um personagem de Corpo Fechado lá em 2000 – filme, aliás, que terá uma continuação... –, mas bem que poderia ser o próprio Shyamalan sobre o seu cinema, que encontra ressonância em tempos tão estranhos como os de 2017.

*Aqui não tem ABNT, mas não resisti em deixar como indicação e referência bibliográfica o artigo de Sandra Bordini Mazzocato, “O Uso da rede social fragmentada como fonte de referências na prática de Lifestreaming” [http://seer.ufrgs.br/EmQuestao/article/viewFile/10815/7380] sobre esta questão da fragmentação do sujeito nos tempos contemporâneos.

**Como de costume, tio Shy não quer spoilers sobre o filme, hein! Ele foi super cuidadoso ao falar do final do longa, durante a coletiva, e até citou como a plateia que o assistiu meses atrás, em um festival em Austin, conseguiu manter o segredo da trama. Então, vamos ser legais com os coleguinhas sendo tão esquivos como este texto tentou ser ;)

 

Fragmentado (Split, 2016)

Duração: 117 min | Classificação: 14 anos

Direção: M. Night Shyamalan

Roteiro: M. Night Shyamalan

Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson, Jessica Sula, Izzie Coffey, Brad William Henke e Sebastian Arcelus (veja + no IMDb)

Distribuição: Universal Pictures

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