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  • Foto do escritorNayara Reynaud

MOSTRA SP 2020 | A resistência e ancestralidade indígenas

Atualizado: 18 de dez. de 2021

A reafirmação territorial e cultural indígena é destaque em dois filmes da programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, apresentando os povos nativos da América de modos bem diferentes. Beans (2020) aposta no típico coming of age para retratar um conflito entre os Mohawks e o governo canadense, acontecido em 1990, através do olhar de uma pré-adolescente, tal qual era a cineasta Tracey Deer na época. Já Panquiaco (2020) se apropria do ritmo e da cultura gunadule para acompanhar, entre o documentário e a ficção, o retorno de um expatriado a sua comunidade no Panamá. Veja a seguir mais detalhes destes títulos:

 

Beans (Beans, 2020)

Kiawentiio e Rainbow Dickerson em cena do filme canadense Beans (2020), de Tracey Deer | Foto: Divulgação (Mostra Internacional de Cinema em São Paulo)

As esferas ordinária e extraordinária coabitam a história do canadense Beans, primeiro longa de ficção de Tracey Deer. A cineasta que nasceu e cresceu em Kahnawá:ke, reserva indígena ao sul de Montreal, se inspira na sua própria experiência de ter vivenciado, aos 12 anos, a Crise Oka, como ficaram conhecidos os 78 dias de impasse e conflito entre as duas comunidades Mohawk da região e a cidade de Oka junto das forças de segurança da província francófona de Quebéc e do governo do Canadá, em 1990. Tudo começou por causa da expansão de um campo de golfe que colocou em risco a floresta e o sagrado cemitério onde estavam enterrados os seus ancestrais, gerando protestos e bloqueio da principal estrada da região pelos Mohawks, além de fortes reações racistas por parte da população nas cercanias.


Este, portanto, é o diferente e tenso pano de fundo para um drama coming of age que se delineia na narrativa, ao utilizar o ponto de vista da pré-adolescente Tekehentahkhwa, mais conhecida como Beans, que é interpretada por Kiawentiio, jovem atriz da última temporada de Anne with an E (1917-19), série da qual Deer participou como produtora executiva e roteirista. A realizadora já havia demonstrado seu interesse por essa fase de descobertas e aprendizado da adolescência no média-metragem documental Mohawk Girls (2005), que originou o seriado Mohawk Girls (2010-17). Aqui, o roteiro escrito por ela e Meredith Vuchnich interliga as agitações que a circundam com os conflitos internos da garota, ainda mais pela inserção de filmagens da época feita pela diretora vinda dos documentários.


Se no início, andava de bicicleta tranquilamente com a irmã (Violah Beauvais), ela é tentada a deixar as brincadeiras infantis para conseguir se enturmar com o grupo de adolescentes mais velhos da comunidade, criando uma amizade com a durona April (Paulina Alexis), mas também ficando suscetível aos perigos aos quais eles são expostos – o filme toca, em maior ou menor grau, nas questões do alcoolismo, automutilação e abuso. Isso a faz travar um embate também com seus pais, que igualmente trazem outra razão para a menina se sentir dividida. No caso, entre o “mundo branco”, com o desejo da mãe (Rainbow Dickerson, que recebeu o prêmio Estrelas em Ascenção do Festival de Toronto pelo papel) de que ela entre na prestigiada escola Academia Queen Heights, e de suas raízes, defendidas pelo pai (Joel Montgrand), enquanto esta divisão cresce no clima que os cerca.


A dualidade também se encontra na própria linguagem e proposição da obra. Um pouco como a série norte-irlandesa Derry Girls (2018-) usa a comédia teen em meio ao histórico conflito entre irlandeses católicos e ingleses protestantes dos Troubles para demonstrar que as dúvidas e aflições típicas desta fase da vida não são interrompidas, independente do ambiente incomum ao redor, o longa canadense trabalha o coming of age para o mesmo fim. Há ainda mais evidente a lógica de normalização transgressiva vista em algumas produções adolescentes recentes em Hollywood e no Brasil, em que os clichês servem a um olhar empático do público a um grupo dificilmente retratado no gênero ou no cinema em geral, ao mesmo tempo em que o simples ato de lhe dar o protagonismo quebra um padrão, sendo mais claro o paralelo com o senso de urgência e perigo de O Ódio que Você Semeia (2018). Talvez, o espectador sinta falta de Beans se assumir tal qual sua protagonista e revelar algum traço mais característico da cultura Mohawk, mas só a força de sua população naquele momento de reafirmação territorial já é um legado em si registrado pelo filme.

 

Beans (Beans, 2020)

Duração: 92 min | Classificação: 14 anos

Direção: Tracey Deer

Roteiro: Tracey Deer e Meredith Vuchnich

Elenco: Kiawentiio, Rainbow Dickerson, Violah Beauvais, Paulina Jewel Alexis e D’Pharaoh Mckay Woon-a-Tai (veja + no site)

Produção: Canadá

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play

 

Panquiaco (Panquiaco, 2020)


O primeiro longa da diretora e artista visual Ana Elena Tejera é um banho nas origens do Panamá, terra natal dela e do protagonista de Panquiaco. Por conta de sua localização entre os oceanos Atlântico e Pacífico, ligando a América Central à do Sul, o país é muitas vezes vista, até pela própria população, como um “lugar de passagem” e, por isso, um caldeirão de referências culturais. A jovem cineasta tem como intento, portanto, promover um lento mergulho ao acompanhar o retorno de um emigrante ao solo panamenho após muitos anos e, a partir do contato dele com sua família e a comunidade indígena onde nasceu, fazer emergir a cultura nativa de sua nação.


O filme exibido no Festival de Roterdã mescla a linguagem documental com elementos ficcionais, começando pela apresentação de seu personagem central Cebaldo de León Smith, que, na realidade, é um antropólogo e pesquisador universitário que mora há anos em Portugal, como um pescador nos mares portugueses. Tejera escolheu tal caracterização porque sua obra se baseia na lenda de Panquiaco sobre a origem do Panamá, na qual um indígena que teria recebido o desbravador espanhol Vasco Núñez de Balboa e o levado até o “mar do Sul” – o colonizador foi o primeiro europeu a avistar o Oceano Pacífico –, entristecendo o mar e fazendo o nativo se deixar levar por suas lágrimas e ter o seu espírito vagando por estes dois mares / oceanos. Essa alma errante e nostálgica é evocada por uma coleção poética de imagens dispersas filmadas em super 8 que pontua a produção em alguns momentos.


O restante do longa acompanha o retorno de Cebaldo aos seus, rememorando rituais, a figura do seu pai ao pé de seu túmulo e a proximidade mística com a natureza, adotando um tempo próprio que pode afastar o espectador não acostumado ao ritmo do cinema indígena, seja ele realizado, de fato, por diretores nativos, como no brasileiro Yãmĩyhex: As Mulheres-Espírito (2019), ou realmente imbuídos de seu espírito, a exemplo do outro título nacional Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos (2018). Tal escolha acaba, no entanto, retirando um pouco do contexto e aprofundamento necessários para o ponto alto da narrativa, na bela comemoração da Revolução Guna, ou Kuna como era conhecida antes. As bandeiras e ornamentos amarelos e vermelhos, com a suástica original que, na cultura gunadule, representa o polvo que criou o mundo, celebram a rebelião promovida pelo seu povo em 1925 contra a tentativa do governo panamenho de ocidentaliza-los, que foi capaz de criar a efêmera República de Tule e, mesmo com a curta duração deste Estado, assegurar a autonomia de seu território ao se reintegrar ao Panamá e garantir a preservação cultural que Panquiaco eterniza cinematograficamente.

 

Panquiaco (Panquiaco, 2020)

Duração: 115 min | Classificação: Livre

Direção: Ana Elena Tejera

Roteiro: Ana Elena Tejera

Elenco: Cebaldo de León Smith, Fernando Fernández, Comunidad Campo Laurel, Comunidad de Ustupu e Kinyapiler Johnson González (veja + no site)

Produção: Panamá

> Disponível no Mostra Play, das 22h de 22/10 (quinta) a 04/11/2020 (quarta), com limite de até 2.000 visualizações

+ Repescagem de 05 a 08/11/2020 na Mostra Play



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