#TBT Across the Universe | O rock como registro histórico
Atualizado: 22 de mai. de 2020

Mais um 13 de julho em que se comemora o Dia Mundial do Rock, sem que muitos conheçam a origem da homenagem. A realização do Live Aid, evento que reuniu ícones do rock como Queen, David Bowie, Mick Jagger, Led Zeppelin, Sting, The Beach Boys, U2, The Who, Black Sabbath, Phil Collins, Dire Straits e muitos outros para arrecadar fundos para combater a fome na Etiópia, na África, ocorreu justamente na data, em 1985.
Entre as apresentações do gigantesco evento em vários países, estava Paul McCartney, um dos integrantes daquela que foi e continua a ser a banda de rock mais famosa do mundo: The Beatles – sim, porque você pode até achar que outras são melhores, mas o sucesso, alcance e reconhecimento único do quarteto de Liverpool são indiscutíveis. É por isso que, com a data caindo justamente em uma quinta-feira, o resgate temático da seção #TBT desta vez destaca o musical que os homenageia de um modo nada superficial.
Comemorando uma década de seu lançamento neste ano – a première mundial ocorreu em 9 de setembro de 2007, no Festival de Toronto e a estreia no Brasil seria só no dia 7 de dezembro –, Across the Universe poderia muito bem contar a história de Paul, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr rumo ao estrelato e como o fenômeno que se tornaram acabou minando a relação deles até o fim da banda, ou ficar apenas nas referências dos nomes dos personagens, como os dos protagonistas Lucy (...in the Sky with Diamonds) e (Hey...) Jude, vividos por Evan Rachel Wood e Jim Sturgess. Mas Julie Taymor, diretora teatral norte-americana responsável por sucessos como a montagem musical de O Rei Leão (1997), preferiu a “longa e sinuosa estrada” de render uma ode à obra dos ingleses traçando um paralelo dela com a efervescência cultural e, especialmente, social da época, para mostrar a sua importância histórica.
A cineasta de Frida (2002), que depois levaria Shakespeare duas vezes para as telas com a adaptação A Tempestade (2010) e o registro da peça A Midsummer Night's Dream (2014), insere as músicas dos Beatles como reflexos diretos ou indiretos dos problemas e eventos que marcaram os anos 60. A banda acompanhou exatamente toda aquela década, já que durou de 1960 a 1970, enquanto as máculas da Guerra do Vietnã e a luta dos negros pelos direitos civis movimentavam os Estados Unidos em protestos antiguerras e contra a segregação racial. A música da época também está representada nas figuras da cantora Sadie (Dana Fuchs) e do guitarrista Jo-Jo (Martin Luther), um casal que remete claramente à Janis Joplin e Jimi Hendrix.
É no apartamento dela em Nova York, com a bela vista dos fundos de outro prédio, que se reúnem os seis personagens principais da narrativa, cada um a sua maneira. A mocinha Lucy vai lá visitar o irmão Max (Joe Anderson), que desistiu da faculdade e foi para a grande metrópole com o amigo Jude, um estivador inglês que veio de Liverpool para a “América” em busca do pai e de uma vida mais instigante. Enquanto isso, Jo-Jo vem marcado pelo luto da morte do irmão durante as manifestações e perseguições durante o Movimento pelos Direitos Civis e Prudence (T.V. Carpio) vem de Ohio fugindo de seus próprios sentimentos.
Se Sadie serve mais pela referência e por congregar todos os personagens e Jo-Jo por abordar a questão racial naquele contexto, Prudence viria para explorar a homossexualidade dela. No entanto, só isso e a bela versão do elenco para Dear Prudence justificam a sua presença, pois o roteiro de Dick Clement, Ian La Frenais e Julie Taymor a coloca de modo aleatório na trama e desperdiça o seu potencial. Isso fica evidente desde a sua apresentação em que canta toda a sua tristeza através de I Want to Hold Your Hand, na qual, apesar do interessante subtexto de sua paixão pela colega de escola, há um plano um tanto cafona da cheerleader andando por entre jogadores de futebol americano se digladiando em slow motion e pretende se mostrar como motivação para a garota simplesmente fugir dali e cair no mundo.
Sim, um olhar mais cínico diria que musicais são essencialmente bregas e, talvez, seja a sua linguagem particular que afaste parte do público que não está acostumado. Mas a beleza deles está justamente em tornar situações quase irreais, como alguém ou várias pessoas saírem cantando e dançando do nada por aí, em cenas críveis dentro da realidade proposta e significativos. É o que ocorre, em geral, com o resto dos números do filme, desde os primeiros que são, aparentemente, mais bobinhos, mas muito bem coreografados e com boas soluções visuais, a exemplo do boliche com I've Just Seen a Face e a pueril It Won't Be Long – a cena do relógio lembra a do início de High School Musical 2 (2007), mas ambos foram lançados quase na mesma época, com o telefilme indo ao ar em 17 de agosto.
No entanto, o grande trunfo de Across the Universe é desenhar uma evolução enquanto filme, seja na trama, nos números ou na construção dos personagens, que se assemelha ao amadurecimento dos Beatles em sua carreira. Por isso, o ponto de virada da trajetória de Max, de fanfarrão universitário a veterano de guerra traumatizado pelos horrores da guerra, quando ele vai se alistar e é convocado pelo Tio Sam ao som de I Want You (She's So Heavy), aponta um progresso no longa, em termos de coreografia, grafismos e efeitos especiais. Tal qual a banda experimentou ao se aventurar em novas sonoridades e temas em suas composições, apesar do sucesso estrondoso com seus hits que conquistaram milhões de adolescentes nos primeiros álbuns.
Neste caminho, porém, o roteiro sofre com uma “barriga” no segundo ato, particularmente com a entrada de Bono Vox como o escritor e guru Dr. Robert – Joe Cocker e Salma Hayek também fazem participações especiais na produção. Se ficasse apenas em I Am The Walrus, pois a passagem alucinógena se faz necessária para contar a história da banda e o contexto daqueles tempos, o filme evitaria um número tão avulso quanto o de Being for the Benefit of Mr. Kite!. Em uma lista de 33 músicas que estão no longa, sendo poucas delas apresentadas só no instrumental, esse é um dos exemplos daquelas que parecem ter sido encaixadas de qualquer jeito na trama, porque “não poderia faltar em um musical dos Beatles”.
É com Strawberry Fields Forever que a narrativa ganha novo ritmo em uma sequência que retrata um pouco da desilusão daquela geração tão utópica frente à violência sem fim. Daí vêm Revolution, a garota correndo da bomba de napalm que se tornou símbolo da Guerra do Vietnã como referência e o assassinato do líder negro Martin Luther King Jr. como citação. Contudo, é com outro hit da banda, Hey Jude, que o filme dá o contraponto. Mesmo lembrando o fim do quarteto com o famoso show no terraço do prédio, Across the Universe deixa a mensagem que All You Need Is Love, fazendo você até esquecer os deslizes da produção e guardar só as boas lembranças do musical nestes 10 anos.
P.S.: em um evento de comemoração dos 20 anos da montagem de O Rei Leão, no início de 2017, Julie afirmou que deseja levar Across the Universe para os palcos, o que surpreendentemente não aconteceu ainda. Por outro lado, também neste ano, saiu a notícia de uma adaptação do musical de West End (a Broadway inglesa) Sunny Afternoon (2014), que conta a história da banda The Kinks, contemporânea dos Beatles, para os cinemas. Talvez seja a chance de ver mais da Inglaterra que foi berço de um cenário tão rico para o rock nos anos 60 e que pouco aparece no filme de Taymor.
Across the Universe (Across the Universe, 2007)
Duração: 133 min | Classificação: 14 anos
Direção: Julie Taymor
Roteiro: Dick Clement e Ian La Frenais, com argumento de Julie Taymor, Dick Clement e Ian La Frenais
Elenco: Evan Rachel Wood, Jim Sturgess, Joe Anderson, Dana Fuchs, Martin Luther e T.V. Carpio (veja + no IMDb)
Distribuição: Columbia Pictures/Sony Pictures